Oiê ...
Nas minhas andanças em busca de materiais para as aulas me deparei com este texto que trata-se de uma resenha sobre o livro A banalização da injustiça social, de Christophe Dejours. Tal resenha me fez pensar a importância desta discussão em sala tendo em vista meu papel de educadora.
Levantar os pontos principais trazidos por Dejours acerca das relações dos sujeitos e do trabalho faz-se premente numa formação voltada para o sujeito do conhecimento.
Milla
A (in)sustentável banalização do ser1
Soraya Rodrigues MartinsI; Roberto Moraes CruzII;
Sílvio Paulo BotoméIII
IMestranda
do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa
Catarina (sorayarm@terra.com.br)
IIDoutor em Engenharia de Produção. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (rcruz@cfh.ufsc.br)
IIIDoutor em Psicologia, Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (botome@cfh.ufsc.br)
IIDoutor em Engenharia de Produção. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (rcruz@cfh.ufsc.br)
IIIDoutor em Psicologia, Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (botome@cfh.ufsc.br)
Como as pessoas sofrem no trabalho,
sacrificam a si mesmas ou sacrificam outros? Por que não há mobilização
coletiva contra o sofrimento no trabalho? E por que cada vez mais as pessoas
toleram situações profissionais que há algum tempo eram inaceitáveis? Mesmo
sabendo sobre o agravamento do sofrimento psíquico no trabalho a que todos
estão submetidos, ele é negado ou banalizado. A resignação, a negação ou a
banalização desse sofrimento ocorrem pela familiaridade? Como é possível
cooperarmos com a injustiça, mesmo quando não a aprovamos? Inquietações como
essas acompanham toda a leitura do livro A
banalização da injustiça social, de Christophe Dejours, publicado no Brasil
em 1999 pela Editora da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.
Nessa obra, o autor faz um exame da
participação e do consentimento das pessoas em relação às várias formas de
exclusão e injustiças sociais praticadas em nome do modo de produção da
sociedade contemporânea. O livro, escrito em forma de ensaio, contém uma
análise do processo de construção da tolerância ao sofrimento no trabalho na
França, que poderia ser transferida para a realidade brasileira, consideradas
as diferenças culturais.
Para Dejours, o grande palco do
sofrimento psíquico é configurado no trabalho, composto de um complexo sistema
de relações e motivações intersubjetivas, tensionadas pelo maniqueísmo das
categorias do bem e do mal. Por detrás das vitrines da contemporaneidade, do
progresso tecnológico, da melhoria da qualidade de vida, surgem as imposições
da organização do trabalho; imposições de horário, ritmo, formação, informação,
rapidez, produção e adaptação à ideologia dos modelos de gestão empresarial. Do
lado dos trabalhadores, a vivência de situações relacionadas às exigências
permanentes de mercado, à ameaça de exclusão, ao desemprego primário e crônico
sinaliza a dimensão social e individual mais evidente do sofrimento no
trabalho. O cenário social é de enfraquecimento das políticas de bem-estar
social. O "clima de ameaça de desemprego" e as práticas de
"enxugamento da máquina produtiva" utilizados, tanto no Estado quanto
na iniciativa privada, intensificam o processo de precarização do trabalho, as
relações de troca descompensatórias e a atitude sacrificial do trabalhador.
O ensaio de Dejours consiste em uma
importante contribuição à análise do processo de mobilização em massa de
pessoas "de bem" para o "trabalho sujo", isto é para o
consentimento, participação e colaboração na injustiça, no sofrimento infligido
a outrem. Para a análise da injustiça infligida a outrem na forma banalizada de
gestão do trabalho, o autor retrocede na História, revendo o nazismo alemão sob
a ótica de Hannah Arendt (1963), conforme citado pelo autor, ao examinar a
"normopatia", a atitude do oficial nazista Eichmann de permitir,
consentir e colaborar na matança indiscriminada de judeus durante a Segunda
Guerra, a qual a filósofa designou como a expressão da banalidade do mal.Dejours,
usando os conceitos de banalização
do mal, a partir de Arendt, e de distorção
comunicacional, de Habermas, realiza uma instigante reflexão sobre a
banalização e a negação do sofrimento no trabalho, relacionando-os a
investigações empíricas de sua experiência como pesquisador.
No percurso dessa obra, uma questão
serve de ponto de partida para o autor: quais
são as motivações subjetivas da dominação; por que uns consentem em padecer(de
tal) sofrimento, enquanto
outros aceitam infligir tal sofrimento?Dejours descreve os processos de
construção e a adoção de estratégias individuais e coletivas de defesa, que
funcionam como uma armadilha psicológica, incrementando a aceitação e a
tolerância do sofrimento no trabalho.
Para Dejours, a banalização do mal
repousa sobre o processo de reforço recíproco das relações entre sofrimento e
trabalho e sofrimento e (des)emprego. Destaca como todos estão envolvidos
nesses processos. Por um lado, demostrando como a recusa sindical em considerar
a importância da subjetividade, negando-a em nome de uma idéia de que o
subjetivo tolhe a mobilização coletiva e a consciência de classe, contribui
para a clivagem2(dissociação
ou cisão) entre sofrimento e indignação, pelo próprio descompasso entre as
lutas sindicais e as vivências do trabalhador. Por outro lado, realiza no livro
a análise de como os trabalhadores, para manterem seus empregos e para não
adoecerem, acabam cometendo atos que reprovam em si mesmos. E, com isso,
reforçam a perversão de um sistema que ataca sua integridade física e psíquica,
além da imagem que têm de si mesmos. O uso de estratégias defensivas, que negam
e rejeitam o sofrimento no trabalho, além de ajudar os trabalhadores a nele se
manterem, termina por promover a contínua precarização do trabalho e do
emprego. Assim como promove uma condição social e existencial indesejável e
inaceitável. Ao banalizar o mal, a injustiça e o sofrimento psíquico, decrescem
as possibilidades de reações de indignação e mobilização coletiva, em
detrimento de uma ação em direção à solidariedade e ao senso de justiça.
A negação do sofrimento no trabalho
nesse contexto promove apatia e rejeição pelos desempregados e vergonha
daqueles que mantêm seus empregos. Esses sentimentos conflituosos desembocam na
impossibilidade de exprimir e elaborar o sofrimento no trabalho, impedindo,
segundo o autor, a fala e o reconhecimento do sofrimento alheio daqueles outros
que estão sem emprego. Isto é, para negar o que sente o sujeito desenvolve a
intolerância para com o sofrimento alheio, perde a consciência dele, pela cisãoentre sofrimento,
(des)emprego e injustiça social. O mal pode ser promovido pela cisãoentre afeto e pensamento,
ou pela simples ausência de pensamento na consciência.
Apesar de a cisãoassumir em cada sujeito
uma forma específica, segundo sua história particular, quando o seto excluído do pensamentoé
comum ao grupo em que está inserido o sujeito pode substituir o pensamento
pessoal por ideologias e estratégias defensivas coletivas. A origem da maldade,
seguindo a reflexão do autor, não parece estar na própria violência, mas nas
estratégias coletivas de defesa mobilizadas diante do medo e da ameaça da
própria integridade física e psíquica, num contexto de relações sociais de
dominação do qual não é possível desertar. A vivência do sofrimento permanece
singular, mas as defesas podem ser objeto de cooperação coletiva. O trabalho,
além de ser a realização de ações subjetivadas (no sentido atribuído pela
Psicologia do Trabalho francesa), é também um viver em comum. No trabalho, as
pessoas criam ações para enfrentar a defasagem entre a organização prescrita
(tarefa) e a organização do trabalho real. Nesse mesmo trabalho, elas constrõem
sentido para a situação, para o sofrimento e para o próprio trabalho. Dejours
identifica dois processos básicos na mobilização subjetiva que colocam uma
pessoa na posição perversa de colaboradora do mal, mesmo sendo ela,
reconhecidamente, uma "pessoa de bem" (não perversa). Por um lado, o
uso do medo e da ameaça de castração simbólica, presentes no discurso da
virilidade (masculinidade) reconhecida pelo grupo como instrumento de
banalização do mal e promotora da inversão do ideal de justiça. De outro, a racionalidade pática(com
condutas, ações, decisões) apoiada em uma racionalidade construída
coletivamente e utilizada pelo sujeito para preservação de sua saúde física e
mental, ou para realização de uma construção subjetiva de sua identidade, e de
seu pertencimento a um grupo.
A ação da "banalização do
mal", descrita por Dejours, repousa sobre um dispositivo de três estágios.
Um deles é constituído por pessoas cujo engajamento não é defensivo, mas é
resultante de impulsos perversos conscientes e inconscientes, onde se situam
aquelas que fazem parte da organização do "trabalho sujo" (do mal).
Um outro estágio é constituído por colaboradores diretos, no qual a
participação ativa é obtida mediante estratégias coletivas e ideologias de defesa
(estratégia coletiva de defesa do tipo "cinismo viril"). Um terceiro
estágio é constituído pela massa das pessoas que recorrem a estratégias de
defesa contra o medo e à ameaça de exclusão comuns ao grupo. Essas podem ser
unificadas em estratégias coletivas de defesa, apoiadas em ideologias
dominantes no grupo, e colocadas à sua disposição também por meio de
estratégias de distorção comunicacional utilizadas pelas organizações de
trabalho.
Dejours, apoiado no conceito de distorção comunicacional(de
Habermas), examina as comunicações organizacionais, a cultura empresarial, a
publicidade e a mídia interna que, em nome da "valorização", criam
comunicações distorcidas sobre o trabalho (a mentira organizacional), ocupando
o lugar do não-dito, do silêncio entre os trabalhadores sobre o real do
trabalho, negando a descrição da atividadeprodutiva,
do sofrimento subjetivo e da injustiça no trabalho. O sofrimento característico
da ação gerencial surge com a construção da mentira organizacional, na
imputação de sofrimento e injustiça ao outro e no apagamento de vestígios que
evidenciam a mentira como, por exemplo, a exclusão ou silenciamento de pessoas
mais velhas (memória) e de pessoas portadoras de doenças do trabalho. O
sofrimento característico dessa ação gerencial costuma ser negado e clivado no
processo de racionalização, que costuma ser apoiado pelo discurso científico
sobre metodologias organizacionais.
A leitura desse ensaio de Dejours
coloca o leitor diante da dinâmica de como as pressões, o medo e a ameaça de
exclusão do trabalho podem gerar alienação, violência e doenças, por meio de
estratégias de defesa contra o sofrimento. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, o
trabalho permanece como mediador de auto-realizaçâo, sublimação e saúde. O
autor, embora explorando as estratégias referentes ao discurso masculino de
dominação, tem o cuidado de diferenciar as estratégias de defesa e a ideologia
defensiva de cunho viril (nas quais o real do trabalho é negado coletivamente
com o uso de racionalizações) das estratégias de defesa construídas no discurso
(por exemplo, na Enfermagem), caracterizadas por um cerceamento do real do
trabalho, sem negá-lo totalmente.
A abordagem clínica propiciada pela
Psicodinâmica do Trabalho sugere que, no cerne do processo de banalização do
mal, está o sofrimento articulado às estratégias defensivas. Para enfrentar
esse processo, é preciso re-qualificar o sofrimento no trabalho e re-conhecer o
intrincamento entre ação,
trabalhoe sofrimento,
dado que uma ação sempre envolve, em sua manifestação, atividade, paixão,
motivação e subjetividade.
A leitura do livro A banalização da injustiça socialrevela-o
denso e interessante, verdadeiramente pertinente, pelas originais articulações
realizadas pelo autor com a finalidade de compreender, pelo método do desvelamento,
o que não é dito e é vivido, por tantos trabalhadores em tempos modernos.
Referências
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém- Um
relato sobre a banalidade do mal. (A primeira edição, em alemão, foi feita
em1963) Tradução de José
Rubens Siqueira.São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
DEJOURS, C. A banalização da injustiça social.
Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
1 Resenha do livro de C. Dejours A banalização da iniustiça social.Traduzido
por Luiz Alberto Monjardim e publicado pela Ed. Fundação Getúlio Vargas - FGV -
do Rio de Janeiro em 1999, com 163 páginas.
2 A noção freudiana de clivagem(ou cisão), associada à noção de inconsciente, designa uma divisão psíquica, configurando uma posição conflitiva do ego, onde o sujeito fica separado de parte de suas representações
2 A noção freudiana de clivagem(ou cisão), associada à noção de inconsciente, designa uma divisão psíquica, configurando uma posição conflitiva do ego, onde o sujeito fica separado de parte de suas representações
MARTINS, Soraya Rodrigues; CRUZ, Roberto Moraes; BOTOME, Sílvio
Paulo. A (in)sustentável banalização do ser. Rev.
Psicol., Organ. Trab.,
Florianópolis, v. 1, n. 1, jun. 2001 . Disponível
em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-66572001000100007&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 22 fev. 2013.
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