PSICOLOGIA ESCOLAR: UMA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO NUMA ESCOLA PÚBLICA DE SALVADOR
RESUMO
O presente
artigo trata-se do Relatório Final da disciplina Estágio I. Tem por objetivo
mostrar uma relação entre a teoria acerca do fracasso escolar e a prática
desenvolvida numa escola pública da cidade de Salvador, no período de Agosto a
Dezembro de 2004. A teoria abordada refere-se à literatura utilizada para embasamento
teórico desta prática.
Palavras Chave: Escola, fracasso
escolar, intervenção prática
___________________________________________
Uma viagem pelo mundo...[1]
As expansões
inerentes ao capitalismo vindas à partir da descolonização e da queda do
imperialismo fazem com que haja uma abertura democrática e uma restruturação
econômica mundial. O liberalismo vem como mentor de um plano capaz de
democratizar a sociedade e, a educação. A posterior tendência neoliberalista
trás como uma de suas práticas a retirada da função assistencialista do Estado
assumida na década de 30. Com isso, passam a existir mobilizações de minorias e muitas
transformações da ciência e da tecnologia.
Foi à partir
da necessidade da expansão do ensino que as propostas educacionais do século
XIX foram implementadas no século XX. A escola pública, leiga, gratuita e
obrigatória surgiu em meio às mudanças prementes nesse tempo fazendo com que, a
concentração de renda e as conseqüentes disparidades sociais entrassem em um
momento de colapso. Desde o final do século XIX até a década de 40 há então, um
aumento nas oportunidades de estudo e, com elas a possibilidade de ascensão
social.
Nos países
desenvolvidos contudo, o número de empregos oferecidos, a partir dessas
mudanças, passa a ser inferior ao número de diplomados e, com isso a
remuneração passa a ser pressionada para baixo. Apesar de tudo isso,
continua-se na ilusão de que a educação ainda seria a garantia de mobilidade
social e de sucesso.
Na década de
50 a situação se torna muito mais aguda pois, o acesso à universidade não
significa uma verdadeira democratização já que, o mercado de trabalho ainda
continua sem assimilar toda essa mão de obra. Com tudo isso, os estudantes
reivindicam maior participação nos diversos setores trazendo para esse cenário
as palavras autonomia, autogestão e
diálogo.
Ao longo de
todo esse tempo começa a nascer um forte interesse pela natureza da criança,
pelos processos de aprendizagem e uma procura por métodos mais adequados. Daí,
há uma busca preciosa pelos conhecimentos da psicologia através da contribuição
do behaviorismo, da gestalt e da psicanálise. O behaviorismo, por exemplo,
contribui com os procedimentos que levam em conta a exterioridade do
comportamento, o único considerado capaz de ser submetido a controle e
experimentação objetivos. A gestalt, contribui com o olhar fenomenológico, que
propõe a retomada da humanização e as novas relações entre homem-mundo e
sujeito-objeto. Carl Rogers foi um outro pressuposto da psicologia que veio a
contribuir para a pedagogia com sua tendência centrada na pessoa, no caso no
aluno.
...após a I
Guerra Mundial, com a industrialização e a urbanização, forma-se a nova
burguesia urbana que vem exigir acesso à educação. Estes segmentos aspiram a
educação acadêmica e elitista e, desprezam a formação técnica considerando-a
inferior. Como nessa época preponderava o operariado e, esse exigia um mínimo
de escolarização, começam a existir pressões para a expansão da oferta de
ensino.
Os conflitos
das forças emergentes então passam a produzir muitos movimentos políticos e
culturais chegando a ser considerada a década de 20 a década do “entusiasmo
pedagógico”. Em 1924, é fundada a Associação Brasileira de Educação (ABE).
Nesse contexto é introduzido o pensamento liberal democrático defendendo a
escola pública para todos, da mesma forma como acontecia em outras partes do
mundo como visto inicialmente. Esse pensamento tinha o fim de alcançar uma
sociedade igualitária e sem privilégios. Todo esse combate à escola elitista tradicional
acaba batendo de frente com uma instituição muito forte no Brasil: a igreja
católica, que considera a educação baseada nos princípios cristãos como sendo
aquela verdadeira.
Ao defender a
laicidade e a coeducação os ânimos se acirram e com isso em 1932 é publicado um
manifesto. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova como fora batizado,
encabeçado por Fernando de Azevedo, trazia a idéia de que a educação era
obrigatória, pública, gratuita e leiga como um dever do Estado a ser
implementada como um programa de âmbito nacional. Era um documento cuja base
era a crítica ao sistema dual que tinha uma escola destinada a ricos e outra
aos pobres. Ele buscava então uma escola de base única e, fora muito importante
pois representou a tomada de consciência da defasagem existente entre a
educação e exigências do desenvolvimento.
Como podemos
perceber, a organização nacional da educação deu-se de forma tumultuada desde o
seu início. Não podemos esquecer a longa
noite para educação que foram os 20 anos da ditadura militar. Essa,
obscureceu a vida cultural, silenciando os intelectuais e artistas e,
intimidando professores e alunos sob um forte regime de repressão.
Contudo, o
campo educacional brasileiro tentou desde sempre implementar projetos
pedagógicos inovadores. Como esquecer-nos de Anísio Teixeira ou Paulo Freire?;
figuras nacionais de extrema importância da educação moderna. Pois é com todo
esse pano de fundo que chegamos hoje à escola do século XXI.
Uma discussão sobre a teoria...
A função
social da escola[3] de
acordo com s pricípios da LDB (Lei de Diretrizes e Bases) está em criar
situações de aprendizagem dos conteúdos necessários, levar os alunos a se
instrumentalizarem, tornando o mundo inteligível nas diversas áreas,
possibilitar acesso aos Códigos da Modernidade (Domínio da leitura e da
escrita, fazer cálculos e resolver problemas, analisar, sintetizar e
interpretar dados, fatos e situações, compreender e atuar em seu entorno
social, receber criticamente os meios de comunicação, localizar, acessar e usar
melhor a informação acumulada, planejar, trabalhar e decidir em grupo),
possibilitar acesso ao patrimônio cultural da Humanidade, valorizar a cultura
de cada um e, ao mesmo tempo, dar acesso aos saberes relevantes de todas as
culturas, escolher um conteúdo pedagógico que seja funcional e formativo,
favorecendo reflexão e produção, ser um espaço de formação, informação e
transformação, educando cidadãos capazes de intervir criticamente na sociedade
em que vivem.
O que vemos então, na realidade, é algo bem diferente. É uma distorção
onde na teoria se tem a proposta de uma escola
do cidadão que é a escola pública tendo esta, por objetivo,
formar a todos independente de etnia, gênero, religião ou classe social. Na
prática contudo, esta é desprovida dos padrões mínimos, virando a escola dos sem opção. Ou seja,
desigualdades sociais e econômicas não são geradas no âmbito da escola, mas
tendem a aprofundar-se no seu interior através desta dinâmica de apartação.
De acordo com estudos citados no texto Novas
Perspectivas sobre os sucesso e o fracasso escolar de Sandra Sawaya, a
maior parte dos alunos atingidos pelo fracasso escolar são provenientes de
camadas sociais mais pobres. Dessa forma, podemos perceber que o fracasso
escolar está muitas vezes ligado ao fracasso do indivíduo pobre que, além de
ter as desventuras da vida cotidiana tem ainda as desventuras de ser um
fracasso na escola.
A escola, de
uma forma geral, segue um modelo onde o instituído é o saber da classe
dominante, mesmo que seja ela uma escola pública. Por conta disso, ela acaba
taxando os alunos provenientes das classes mais pobres como sendo desprovidos
de cultura e, mais do que isso, desprovidos de inteligência buscado diferenças
individuais, através de testes, que ratifiquem essa sua premissa. Assim, há uma
imposição da ideologia dominante como concessionária da violência do sistema
social.
Nesta visão,
o fracasso escolar é entendido como sendo do aluno na medida que ele não possui
as características necessárias a ter um bom desempenho escolar. E a escola...?
Será que ela em si não tem nenhuma influência nesse processo? Será que tem
materiais e métodos adequados à realidade do “aluno pauperizado”[4]?
Será que tem professores com formação adequada para a prática da docência com
essa classe?
Com essas
perguntas acabo por ver que as respostas encontradas são as piores que podia
imaginar. Elas levam ao pensamento de que todo o sistema está sim adequado e
que, quem não está adequado é o aluno, aquele pobre coitado desprovido de boas
condições de vida que por conta disso passa a ser portador de deficiências. Ou
seja, a escola participa do fracasso escolar não só com a falta de estrutura
física e de pessoal mas também corroborando com a teoria da diferença cultural[5]
onde os padrões da classe dominante organizam as práticas e as concepções
da escola pública cuja maioria dos
alunos tem um nível sócio econômico baixo.
Os alunos, a
partir desse ponto de vista, são taxados de pertencerem a uma cultura
diferente. A sua cultura é desvalorizada e, até mais do que isso, é
desconsiderada. As características psicossocias do aluno pobre são usadas para
reiterar a seletividade social e, aí está uma das lacunas da escola pública: a
dificuldade em aceitar as características do aluno pobre e, por conta disso a
perda da sua função formadora nas camadas populares.
Os
preconceitos vistos na escola estão embutidos no preconceito social existente.
A escola não questiona o seu funcionamento, ela é taxada de ruim por ser
pública e não questiona sua prática. Assim, se continua afirmando que a
ausência de dimensões socais é a culpada por ser o aluno um fracasso na escola
sem levar em conta que esse termo está carregado de um juízo de valor que torna sempre a classe pobre como sendo
desprovida de cultura querendo que ela compartilhe das mesmas representações da
classe dominante.
Em se tratando da seletividade do sistema, o
ensino dado nas escolas públicas faz com que o aluno que não alcance um dado
índice seja considerado como um fracassado escolar. Contudo, os alunos de
escolas particulares de certa forma também sofrem com esse mesmo termo, neste
caso, não havendo uma relação entre o fracasso e carência cultural.
A escola,
desta maneira, acaba influenciando todo um pensamento envolvido na tentativa de
melhorar o desempenho sistema. Não se percebe os limites existentes na visão
medicalizada e psicologizada de que o educando tem uma história de vida mas que
nem por conta disso ele vai ser um fracasso. Dessa forma, a escola mais uma vez
busca a causa do mau desempenho no aluno e não em si, nas suas práticas ou nos
seus processos, evidenciando as relações de dominação existentes. Todos, escola,
professores e sociedade ainda estão presos ao preconceito e ao mito de
que professor bom é aquele que tem o total controle da turma deixado totalmente
de lado o potencial criativo existente dentro de cada aluno. Isso não é levado
em conta ou, é considerado rebeldia. Como então fazer diferente? Como quebrar
com o instituído? Acredito que isso se dará quando as práticas forem revistas e
redimensionadas, quando houver novas concepções acerca da produção do fracasso
escolar.
Em suma, a
escola não percebe sua influência no processo de fracasso escolar através da
precariedade da formação docente, da falta de infra-estrutura tanto física
quanto de pessoal, da falta de um projeto pedagógico. Os problemas são sempre
colocados no aluno, não há uma busca de compreensão dos processos gerados a
partir de dificuldades. Não processos só relativos a inteligência, memória,
cognição mas, de processos mais amplos, os pessoais, aqueles que poderiam ser
utilizados como ferramentas de aprendizagem por estarem mais próximos da
realidade de aluno, “tudo é visto como estático e imutável por definição, não
se questionando a participação do professor, que se comporta como observador de
um processo, quando na verdade é seu principal agente” como bem coloca Khouri[6].
A realidade na prática...
O chegar na
escola já se iniciou como uma experiência muito rica. À porta da coordenação
uma fila de pais esperando para ser atendida e, lá dentro muitos alunos
tentando explicar a briga ocorrida minutos antes no pátio interno a alguém
atrás da mesa que devido ao tumulto não dava para vermos direito. Era uma
torrente de falas atropeladas em que era impossível distinguir os seus autores.
Nesse instante, esperando uma oportunidade para junto com a minha orientadora
fazer a apresentação oficial passei a prestar a atenção nas notas da II Unidade
divulgadas no mural à minha frente.
A primeira
impressão foi de estranheza. Haviam mais notas vermelhas do que azuis isso em
todas as turmas do turno matutino, 11 no total, da 5ª a 8ª série que a escola contemplava. Numa
análise um pouco mais profunda das notas vi que, matérias como Artes e
Jornalismo, também tinham um baixo índice de aprovação e isso me despertou logo
uma questão a ser posteriormente averiguada.
Finalmente
chegou a hora das apresentações. A minha orientadora perguntou à senhora
sentada no seu lindo trono azul atrás
da mesa qual a sua função na coordenação e fomos surpreendidas com a resposta de
que, ali ela era tudo. Como assim, tudo?
Essa foi uma
questão que entendi minutos depois. Ela era responsável pela coordenação no
turno da manhã e, nos disse ser tudo pois suas atividades iam desde conversar
com pais, passando por resolver brigas e furtos ocorridos, até dar conta das
provas que ainda não tinha sido digitadas para a aplicação que seria dali a
alguns minutos. É, era tudo mesmo!...As apresentações então foram feitas e
ficou combinado que os meus dias de estágio seriam às Segundas, Quartas e
Sextas pela manhã.
Na sexta
feira então segui para o meu primeiro dia de estágio. Só pensava em demandas
explícitas, demandas implícitas, a vontade dos professores, o que a coordenação
ia sugerir etc., etc., etc...Quando cheguei lá não era bem assim.
Fui encontrar
com a coordenadora[7] ela,
simpaticamente foi me apresentar na sala dos professores a eles e, esse foi o
momento em que tomei pé do que me esperava dali para frente.
Todos os
professores foram unânimes em dizer que os alunos precisavam mesmo de uma
psicóloga. Todos falavam ao mesmo tempo, consegui ouvir com muita dificuldade
frases como: Ah! eu faço questão de encaminhar uma listinha pra você atender;
nossa que bom que você chegou, aqui precisa mesmo de psicólogo; não sei se você
vai conseguir ficar, é muito difícil trabalhar aqui. E essa foi a minha
apresentação e o meu primeiro contato com o corpo docente.
Dias depois,
após já estar mais inteirada do funcionamento da escola comecei a andar um
pouco pelo pátio. A minha presença causou um certo burburinho e a grande
questão pairava no ar. Quem é essa? Será que é a nova professora de alguma
coisa? Foi aí que alguns alunos me pararam e fizeram a tal pergunta: Você é
nova aqui? Veio dar aula de que? E então pude me apresentar a eles como a
estagiária de psicologia.
A reação
deles foi muito interessante, deram risadas, disseram que tinha muito maluco
ali com quem eu precisava conversar mas, o mais interessante, foi o acolhimento
e o carinho com que me receberam. Não pude continuar a conversa pois, um funcionário
me chamou dizendo que a coordenadora precisava falar comigo com dada urgência.
Me despedi dos meninos e disse que em breve faria um trabalho com eles. À essa
altura nem mesmo eu sabia que trabalho seria esse mas, tinha que sair dali e
não podia deixar que a ansiedade deles com relação a minha presença ficasse sem
uma resposta.
Chegando à
coordenação fui logo inferida pela coordenadora se eu podia conversar com “um
bando de alunos bagunceiros, da 8ª seria B, que tinham jogado uma pedra para
bater nela e que, com isso, tinham quebrado uma janela do andar superior”. Sem
saber como dizer não, (afinal, eu era a estagiária de psicologia, a solução da
escola para problemas de indisciplina, o sujeito suposto saber lacanianamente
falando) fui ao encontro do tal grupo[8].
Eram 6
meninos e 1 menina. O nosso encontro, por falta de lugar uma questão
posteriormente referida, se deu na sala dos professores que aquela hora estava
vazia pois estavam todos em sala de aula. Primeiro me apresentei, o que acho
não ter sido uma boa idéia pois logo ouvi um “Não sou maluco pra conversar com psicóloga” mas, segui o que tinha por obrigação fazer já
que estava naquela situação. Questionei o que tinha acontecido e, então, todos
começaram a explicar ao mesmo tempo. Perguntei então a D. (15 anos) se ela
podia me explicar o que de fato tinha acontecido para poder organizar os ânimos
exaltados àquela altura. Ela fez que sim com a cabeça e, os outros então
ficaram calados enquanto ela começou a me contar[9]: “
- Foi assim, sábado a gente teve aula, aí a professora de matemática juntou as
turmas A e B pois tinha pouco aluno. Como ela já tinha dado o assunto pra nossa
turma disse que podíamos sair. Aí a gente saiu e ficou na mangueira. Quando a
gente vê vem ela W. (a coordenadora) pra tirar I. (15 anos). Que estava andando
de skate e quando viu J. (16 anos) mandou ele ir embora pois ele estava
suspenso e só podia entrar quando o pai dele viesse aqui. Mas ela foi muito
grossa. Botou ele pra fora, nem pediu por favor, chamou até o segurança. Aí a
gente foi solidário com ele e saiu todo mundo.” G. (15 anos) então pede para
falar: “Olha, professora[10],
foi isso mesmo mais foi um grupo que passou e jogou a pedra não foi a gente
não. É que tem uma bicha aí na frente (nesse momento G. se referia ao homossexual
que morava na casa em frente à escola) que não gosta da gente e fica falando
mentira”. Nesse momento então voltou o tumulto, todos falavam ao mesmo tempo e
tive que intervir para poder organizar o que se tornara então uma sessão de
acusações.
Senti nesse
momento a ansiedade deles em ouvir alguma coisa vinda de mim e, então pela
primeira vez no estágio fiquei na posição de psicóloga prestes a dar a minha
primeira contribuição. Falei que eles precisavam primeiro se acalmar um pouco.
Refleti com eles o ocorrido e então propus se eles poderiam representar[11] o
ocorrido sendo que cada um estaria no papel que não fosse si próprio. Foi muito
interessante o resultado. O aluno que representou a coordenadora quando
questionado por mim disse entender o lado dela mais, ainda assim, não aceitava
o fato dela ter sido rude com eles. Então, com essa intervenção houve um
movimento da parte deles em chamar a coordenadora e a diretora para discutir o
ocorrido. Foi feito isso.
Mudamos então
de sala, fomos para a coordenação. Lá, encontravam-se a diretora e a
coordenadora. Fui então a mediadora do diálogo. Passei para elas o que eu tinha
conversado com os meninos. Eles fizeram uma pauta do que queriam discutir: 1)
mais diálogo entre os alunos e a coordenação, 2) mais educação por parte da
coordenadora, 3) mais respeito entre ambas as partes, 4) menos preconceito com
os alunos - que eles diziam ser marcados por conta da indisciplina. A conversa
então fluiu com todos colocando os seus pontos de vista. E, algo de
surpreendente aconteceu. G. (15 anos) assumiu que ele quem tinha jogado a pedra
na janela. Essa atitude fez com que a coordenação reconsiderasse o fato dele
ser transferido da escola e, então, ficou combinado que ele pagaria o vidro e a
mão de obra para fazer o conserto. Pela primeira vez saí do estágio com o
sentimento de dever cumprido.
Sobre a falta
de lugar, a qual me referi anteriormente, foi uma questão um pouco delicada.
Inicialmente fiquei na sala da coordenação contudo, não gostaria que a minha
figura ficasse atrelada à esse ambiente que estava intimamente ligado à punição
sendo até ‘carinhosamente’ denominado
de “delegacia” pelos alunos. Então, conversei com a coordenadora e me foi
cedida a biblioteca que por conta do número insuficiente de funcionários para
fiscalizar a entrada e saída de livros ficava fechada. Esse ambiente foi então
por mim considerado local de atendimento quando estivesse disponível e, quando
não houvesse a possibilidade de uso do mesmo, eu usaria outro local já que
Winnicott estaria avalizando a minha conduta terapêutica permitindo assim o uso
por exemplo do banco embaixo do pé de manga.
Foi o que
ocorreu numa Quarta feira ensolarada quando fui chamada pela coordenadora para
atender um aluna da 8ª série A que chorava muito sem querer dizer a ninguém o
que estava acontecendo. Sem outra opção de local, já que a biblioteca estava
sendo utilizada para passar um vídeo para os alunos da 5ª série, convidei-a
para sentar-se embaixo da mangueira. N. (15 anos) estava em prantos e para
conseguir acalmá-la um pouco propus que respira-se fundo tentando relaxar. Ela
de fato o fez e então conseguiu iniciar sua fala[12]:
“ -Não quero dizer a ninguém mais estou muito triste, minha mãe está com câncer[13] e
sinto que vou perder ela. Dói muito. Ela foi ser operada e não pôde o médico
quando abriu desistiu pois viu que não têm mais jeito. Eu tento ser forte,
junto dela não choro mais tem horas que caio, não dá”. A minha intervenção se
deu apenas no âmbito da escuta, fiz desta uma ferramenta na qual N. pudesse
sentir-se acolhida. E foi, o que de fato ocorreu, após falar longos minutos
sobre a doença da mãe e sobre o seu sofrimento N. disse sentir-se mais leve.
Pontuou que não gostaria que as suas amigas da escola soubessem. Deixei-a
tranqüila com relação a isto pontuando que o psicólogo trabalha em sigilo,
senti que isso fez com que ela se ficasse mais à vontade naquela situação. Ela
me agradeceu a escuta eu lhe disse ser este um dos meus papéis ali, o de
acolher quando alguém sentisse necessidade de expor suas angústias. Deixei-a à
vontade e apenas pontuei que sempre que necessário ela me procurasse. Ela então
enxugou as lágrimas e foi ao encontro da sua mãe que fora chamada pelas amigas
(que não sabem que ela está doente) e chegou muito preocupada com a filha
apesar de mostrar-se um pouco debilitada. Logo em seguida ambas foram embora e
eu também com mais uma vez, o sentimento de dever cumprido.
Dias depois,
estava eu na biblioteca conversando com uma aluna da 8ª série B quando chegaram
três alunos da 7ª série C à porta D. (14 anos), T. (15 anos) e W. (16 anos).
Perguntei se desejavam algo e convidei-os à entrar pois, a aluna já estava
saindo. Eles concordaram. Deixei em cima da mesa disponível lápis de cor, giz
de cera, hidrocor e papel ofício. Eles então perguntaram o que o psicólogo
fazia. Devolvi a pergunta com o propósito de perceber qual era a fantasia deles
com relação à essa figura tão persecutória que era o psicóloga (o profissional
que sabe tudo!) Fiquei surpresa com as respostas, pela primeira vez não ouvi
que era cuidar de loucos. Eles colocaram que o psicólogo era alguém que ajudava
os outros quando esse tinha problemas e, precisava conversar. Perguntaram então
sobre o material em cima da mesa e eu disse que era para desenhar, prontamente
eles tomaram posse do material e colocaram a mão na massa, exceto T. (15 anos).
Deixei-os bem à vontade e fiquei só observando o que acontecia.
D. (14 anos)
e W. (16 anos) desenhavam e pintavam, T. (15 anos) continuava com seu papel em
branco e demonstrava uma enorme ansiedade por causa deste fato. Sentindo que a
ansiedade a cada instante aumentava estimulei-o a desenhar o que viesse a sua
cabeça e, assim então, ele começou a escrever o nome da escola no meio do
papel.
Os desenhos
mostraram algo bem interessante: o de W. (16 anos) trazia o nome da escola
grafitada e o dizer “terror escolar”, embaixo algumas linhas imitando um livro
aberto onde de um lado estava escrito em verde os pontos bons e do outro, em
preto, os pontos ruins. O de D. (14 anos) trazia o desenho da escola, sendo que
esta estava pegando fogo e com os tijolos caiando. Já o de T. (15 anos) não era
bem um desenho, era o nome da escola ao centro circulado de verde e todo
rabiscado de vermelho fora do círculo. Quando eles acharam que os desenhos
estavam terminados, guardaram todo o material nas respectivas caixas mostrando
uma preocupação em manter tudo arrumado como quando chegaram. Perguntei então o
que eles tinham achado de desenhar e dos desenhos e, aí tive uma surpresa com a
explicação que eles deram àquela situação. Eles alinharam os desenhos de forma
que o primeiro foi o grafite “terror escolar”, o segundo foi o nome da escola
e, o terceiro foi a escola pegando fogo. Eles disseram que gostaram de ter
aquele momento e que acharam interessante o seguinte: o primeiro desenho
mostrava a escola sendo destruída pelo grafite tornando-se um “terror escolar”
apesar de ter pontos bons e pontos ruins, o segundo mostrava a escola no centro
e o círculo em volta significava a proteção que eles deveriam ter pela escola,
para ela não chegar ao terceiro desenho, que era a escola destruída pelo fogo.
Após essas análises eles disseram que agora percebiam como seria importante
cuidar da escola.
Achei muito
interessante como a introdução de uma nova perspectiva de intervenção, através
do uso de materialidades proposto por Donald W. Winnicott, permitiu que a fala
fosse viabilizada como propunha seu fundador. Segundo Winniciott “é preciso
haver um ser para que haja um fazer autêntico e espontâneo a ponto de
nos sentirmos fazendo o que somos”[14],
sendo o encontro inter-humano capaz de “favorecer condições propícias à
presentificação de si mesmo, estimulando os participantes a um viver criativo”[15].
Para ele ainda, “a presença humana do terapeuta, enquanto pessoalidade e
singularidade, indica que qualquer outra pessoa não faria da mesma forma
simplesmente pelo fato de ser outra pessoa” [16].
Como ainda estou iniciando o estudo de tal
autor, eu não tinha percebido como por ser tão simples, a sua teoria se torna
tão difícil de ser aplicada, por estarmos presos a tudo aquilo que durante os
anos de faculdade aprendemos como verdade única. O enquadre diferenciado
proposto por Winnicott só foi por mim apreendido e utilizado no último
atendimento citado neste breve artigo. Isto não quer dizer que os outros não
tenham tido validade mas, certamente não podem estar contidos como atendimentos
de base winnicottiana.
Tudo isso me fez pensar na importância de
novas modalidades de atendimento que contemplem essa nova concepção de ethos
humanos. Afinal, a arterapia winnicottiana pontua que o foco está no acontecer,
que se dá no campo inter-humano. Ou seja, o que se pretende com o material mediador é o seu uso criativo no
processo de busca do self, “com o
objetivo de propiciar condições para um desenvolvimento emocional que capacite
o indivíduo a expressar-se, fazendo-se presença”[17].
A
materialidade usada no atendimento do caso citado (desenho livre) é a
ratificação do método do jogo do rabisco de Winnicott. Este, não no sentido
literal mas, em termos de modalidade de mediação que permite e facilita o
estabelecimento da comunicação emocinal entre terpeuta e paciente, “valorizando
a perspectiva da presença real do psicanalista e abandonando a idéia de que o
fenômeno transferencial exigiria o esfumaçamento da pessoalidade do
psicanalista”[18].
Winnicott[19],
acredita que através da possibilidade do brincar genuíno o paciente pode ser
criativo e “é somente ao ser criativo que o indivíduo vem a descobrir o self”. Dessa maneira para ele a tarefa
do analista, não importando aí o setting
(neste caso a escola) está no fornecimento da possibilidade do brincar genuíno
como fora feito (desenhar) e, também, no fornecimento do espaço facilitador que
constitui a área intermediária da experiência. Tais colocações tornam-se mais
claras se pensarmos na idéia winnicottiana de que toda psicoterapia se dá “na
superposição de duas áreas, a do brincar do terapeuta e a do brincar do
paciente”[20].
Voltando
à questão das notas vermelhas que muito me intrigaram no primeiro contato com a
escola, essas não puderam ser avaliadas por mim oficialmente. Os meus
atendimentos ficaram mais no âmbito da questão disciplina/ indisciplina, violência e problemas pessoais. Acredito
sinceramente que após entender um pouco o contexto no qual estava inserida essa
questão ficou fora de foco já que, a demanda dos problemas acima citados
estavam como pano de fundo nas questões da nota vermelha.
Assim, o
período de intervenção teve como foco os alunos e, como visto no tópico Uma discussão sobre a teoria..., a
teoria condiz com a prática dentro da instituição no que tange a teoria da diferença cultural. Em tal
tópico, eu tratei como o fracasso é colocado pelos livros e como é visto pelo
ponto de vista dos professores e da sociedade questionando-o, logicamente. Mas,
certamente diante da experiência que tive espero ter podido mostrar o ponto de
vista do aluno que diante da sua realidade e dos seus problemas pessoais está
inserido em uma instituição social que pouco lhe dá chances de expor-se como
sujeito olhando-o apenas sob o prisma de a-luno,
aquele que não tem luz, perdendo a oportunidade de com as experiências de
vida que eles possuem, ter ferramentas mais adequadas para mudar esse sistema
caótico. Julgar a capacidade cognitiva e operacional de uma pessoa somente
através da ótica da escola é de acordo com Maria Helena Souza Patto “uma
estupidez intelectual”[21].
Segundo a autora, a vida é a vida, a escola é apenas uma situação de vida muito
restrita, “quanta gente existe que aprende a usar os jogos de linguagem e são
uns idiotas na vida...a única coisa que sabem fazer é falar, jogar com as
palavras, passar nos testes de todos os tipos e, não ser na vida nada além de
uns cogumelos ou baobás, como diria o Pequeno Príncipe”[22].
BIBLIOGRAFIA:
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1996.
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1996.
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psicologia escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
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São Paulo: NEW, 2003
VAISBERG, T.M.J.A. et all “Flor-rabisco”:
a oficina psicoterapeutica de arranjos florais. São Paulo: NEW, 2003
WINNICIOTT, D.W. O brincar: a
atividade criativa e a busca do eu (self). In: O brincar e a realidade. Rio
de Janeiro, 1975.
[4]Termo
utilizado por Sawaya no texto Novas
Perspectivas sobre os sucesso e o fracasso escolar p.201
[7]Passarei
à partir daqui a chamá-la assim para fins didáticos. Na verdade essa
profissional está ocupando tal cargo na coordenação por estar em readaptação
funcional por conta de possuir LER (lesão por esforço repetitivo) no braço
direito.
[8]Os
nomes serão preservados sendo utilizado apenas as iniciais e eventualmente, as
idades para fins de uma maior caracterização.
[9]O
seguinte diálogo não é a transcrição literal do acontecido pois, o mesmo não
fora gravado. Ele é uma forma ilustrativa com base nas anotações feitas durante
a conversa, pela estagiária/autora.
[10]Essa
é a maneira que sou normalmente chamada pelos alunos. Alguns me chamam pelo
nome mas, a maioria me chama de professora, o que não me incomoda pois, eles
sabem distinguir o meu papel do papel do professor, de fato.
[11]Apesar
de não ter formação psicodramática senti a necessidade do uso desta técnica.
Tive contato com a mesma através de uma colega de curso que está fazendo tal
formação.
[12]Novamente
acredito ser importante pontuar que a presente fala não é a transcrição literal
do acontecido, é uma forma ilustrativa com base nas anotações feitas posterior
à conversa.
[13]A mãe de
N. está com câncer de útero e esse está com metástase por todo abdômen por
conta disso ela várias vezes no mês ela acaba sendo internada e esse processo
para N. tem lhe causado muito sofrimento.
[14]Apud,
VAISBERG, T.M.J.A. et all O uso da
boneca-flor pelo psicólogo em seu diálogo com a clínica winnicottiana da
maternidade. p.88
[15]VAISBERG,
T.M.J.A. et all Encontro na praça: teatro espontâneo com estudantes numa perspectiva
winnicottiana. p.83
[16]Apud,
VAISBERG, T.M.J.A. et all “Flor-rabisco”:
a oficina psicoterapeutica de arranjos florais. p.148.
[17]VAISBERG,
T.M.J.A. et al A materialidade na oficina
psicoterpêutica -’arte em papel’. p.77
[18]VAISBERG,
T.M.J.A. et al A oficina de rabiscos e
outras brincadeiras, o uso de marionetes e o atendimento a crianças com
desordens emocionais severas. p.81
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