De
um modo geral podemos considerar que o corpo e os gestos são fundamentais para
a formação global do ser humano. Desde que nasce, podemos perceber que a
criança usa a linguagem corporal para conhecer a si mesma, para relacionar-se
com seus pais, para movimentar-se e descobrir o mundo. Essas descobertas feitas
com o corpo deixam marcas, são aprendizados incorporados e eficazes, que lhe
dão acesso a ordem da cultura, além de auxiliar na formação do mundo simbólico
deste sujeito.
Para que de fato isto seja
constituído de modo efetivo e psiquicamente saudável, neste sentido sob o
prisma da psicanálise que aqui tomo como balizador, é necessário que a
constituição do sujeito se dê dentro da base triangular. A triangulação
edipiana formada por pai – mãe – criança inaugura um mundo simbólico sustentado
pela lei exercida pela função paterna, o pai fazendo parte do mito necessário à
ordem (Lei) e, essa suposição torna-se universal e paira no imaginário
coletivo.
A esse respeito, Lacan
defende a importância do pai, não enquanto ser
encarnado, mas como ‘entidade
essencialmente simbólica’ que ordena uma função. Nesse sentido, a questão
do pai é postulada por tal autor sob a égide da triangulação edipiana como
unidade fundadora da família. Com isso, busca-se marcar a importância das
funções parentais e do seu papel simbólico enquanto um sistema ordenador do
sujeito e suporte da estruturação psíquica da criança, permitindo-lhe
iniciar-se em uma existência significante.
Assim, parafraseando Lacan, a
família não se constitui apenas de homem, mulher e filhos, ela é antes
construção psíquica, onde cada membro tem sua função e seu lugar
constituindo-se num verdadeiro sistema cuja marca desempenha papel fundamental
no nascimento do sujeito, em sua inscrição subjetiva.
Esta prévia psicanalítica tem
como intuito demonstrar o valor da família como uma instancia importante para a
criança numa ordem simbólica. As palavras que lhes são dirigidas são cheias de
sentimentos dos agentes que a circulam e, inaugura possíveis vias de
simbolização e sentimento. A família é então a entrada em contexto amplo e
social, e é assim que, para fins desse trabalho, considera-se a família, de
modo geral, nos moldes propostos pelo psicanalista Jacques Lacan, ou seja, como
“sendo aquela na qual configura-se não
apenas um grupo natural, mas, simbólico”.
A partir de tais premissas vemos então a
importância simbólica da família na estruturação de uma criança e ainda a
importância do corpo visto que a criança pequena vivencia inicialmente o mundo
no corpo. Isso ficará ainda mais demonstrado quando a criança passa então a ter
fraturas no processo de conhecimento. O seu corpo, o seu movimento, a sua
aprendizagem em algum momento podem apresentar-se fracassados e eis que a
análise de tal contexto – a família - é remetida para que a compreensão deste
sujeito se faça.
Uma criança, neste sentido, pode
apresentar uma inapropriação do seu corpo de modo que é torpe nos seus
movimentos. Estes a tornam uma desajeitada para o senso comum, mas, mais do que
isso, ela vivencia um significante de incapacidade como sendo a sua imagem
corporal, pois desde sempre fora deste modo considerada e falada pelo meio
familiar como aquela que é incapaz de pegar algo que “tudo cai das suas mãos”
ou ainda “vive caindo pelo caminho”.
A contribuição da
Psicomotricidade neste caso se mostrará eficaz quando o profissional conseguir
acessar e compreender tal significante e permitir que o sujeito o elabore de
modo mais adequado passando a uma imagem corporal diferente e, por conseguinte
uma vivência corporal menos sintomática dando outros significados à sua vida.
Isso se dará dialeticamente em âmbito inconsciente influindo no consciente
através das atitudes globais do sujeito. O local adequado deste tipo de análise
seria então o setting terapêutico
onde através do brincar com materiais menos estruturados como panos, bolas,
tubos, bambolês dentre outros que lhe permitam simbolizar, o psicomotricista
pudesse desenvolver sua linha de trabalho.
Os conhecimentos da psicomotricidade
à educação ampliam e auxiliam então questões referentes a aprendizagem quando
demonstram que alguns casos de dificuldade não se circunscrevem apenas a
questões pedagógicas em si, mas, a questões psicomotoras. Por vezes, nas
questões levantadas vem à tona uma imagem corporal desconexa de modo que a
atitude emocional frente ao seu próprio corpo naquele momento está lhe
permitindo simbolizar através daquele sintoma escolar. Por outras vezes, uma
falta de domínio óculo-manual - que é fundamental de ser adquirido para que a
criança tenha um bom domínio da escrita - necessita ser trabalhado. Neste
sentido, percebamos quão importante é a interferência multiprofissional fazendo
o educador o encaminhamento necessário e ampliando sua leitura do cenário
educativo contemporâneo.
Outro exemplo disso, seria
quando um profissional consegue verificar que uma criança apresenta
comportamentos mais instáveis tendo necessidade de estar em movimento sendo
desorganizada no espaço e nas questões práticas. Ele tem então o conhecimento
teórico acerca da psicomotricidade que por vezes uma criança desorganizada
apresenta também um esquema psicomotor desorganizado. Daí verifica a
importância de um trabalho psicomotor que permitirá que seja redimensionada a
sua falta de planejamento motor passando a usar seus movimentos em relação ao
outro, a si mesma e ao meio - a sua corporeidade - como forma de melhorar essa
sua relação Eu no Mundo.
Certamente é na escuta minuciosa
e na acolhida da demanda “através de um olhar que possa contemplar e alcançar a
singularidade das existências”,
através da utilização do lúdico, do jogo, da observação das falas, dos
silêncios, dos gestos e do corpo, enfim, das diferentes manifestações
expressivas do sujeito trazidas ao profissional e, ainda avaliando como vão se
construindo os caminhos traçados pelos desejos humanos e seus quereres concernentes
à aprendizagem, revelando deste modo a
sua condição de ser-no-mundo que irá pautar o trabalho que tenha uma orientação
psicanalítica visto que o ato de escutar concebe a subjetividade como
constituída através dos vínculos com o outro e, permitirá um olhar que enfatiza
os artifícios internos, subjetivos e intrapsíquicos do aprendente que neste
caso encontra-se em “processo de construção do conhecimento, o ser cognoscente”.
Em
tempo, lembremos que o trabalho com o corpo durante a escolarização passa por
períodos distintos. Podemos de um modo geral considerar que se a apropriação
deste corpo não se der adequadamente poderemos encontrar dificuldades no
futuro, pois a simbolização no corpo vai se dando na medida em que o sujeito
vai se constituindo enquanto tal. Durante a Educação Infantil, por exemplo, a
necessidade de movimentar-se é mais respeitada pela escola, o corpo é usado em
brincadeiras, atividades de arte, de música etc. A criança pode correr, pular,
levantar-se sem censura alguma. O problema é na passagem para o primeiro ciclo
por volta de 6 ou 7 anos.
Neste
caso, a criança é chamada a ter uma outra postura, a de ser mais séria, afinal
de contas, acredita-se que para entrar no letramento é necessário estar sentado
em frente ao ‘mestre’ para dele ‘beber’ o conhecimento. Mas será que se trata
apenas de uma questão cronológica? Será que há necessidade de olhar fixamente
para o quadro para aprender ou, será que vivenciar o aprendizado no corpo torna
mais efetivo e mais satisfatório aprendizado?
Estas
são questões a se pensar! Como pontua Esteban Levin em entrevista à
repórter Paola
Gentile da Revista Nova Escola “Os movimentos são saberes que adquirimos
sem saber, mas que também ficam à nossa disposição para serem colocados em
uso”. Nesta mesma entrevista, Levin pontua ainda que “a obrigação de deixar o
corpo estático, sem movimento, pode ser uma das causas da hiperatividade, isso
sem falar das dores corporais que a falta de atividade às vezes traz”. Ratifico
com isso a minha hipótese na prática psicológica de que muitos casos
encaminhados pela escola como falta de atenção e concentração, ou ainda,
dificuldade de aprendizagem estão muito mais associados a questões psicomotoras
mal trabalhas e, até por que não, mal administradas.
Sim,
digo mal administradas pois, percebo uma ansiedade atual quanto a criança
permanecer sentada chegando este aspecto a ser qualificado como avaliativo. Em
tempos de tecnologia e cibercultura
onde se fica sentado em frete à TV ou na internet, em chats, redes sociais ou em jogos eletrônicos durantes horas,
parece-me que isto faz esquecermos que criança por si é movimento, é corpo em
movimento como meio de absorção do mundo ao seu redor.
Suponho
que uma forma de minimizar tais encaminhamentos seria um trabalho planejado com
a finalidade de demonstrar ao professor que um bom uso do corpo pode ser de
grande ajuda no processo de aprender e apreender conteúdos. Aprender
experimentando no corpo é mais fácil do que sentados estáticos em frente ao
quadro-negro afinal assimilar palavras, conceitos, teorias e construtos é
realizado por cada um de modo distinto e, a padronização do estar sentado pode
dificultar este processo para aqueles que são mais corporais do que verbais.
Devemos enquanto profissionais não perder de vista a possibilidade de pensar
várias opções para a criança adquirir conhecimento afinal o uso do movimento
corporal pode ser um recurso prazeroso e, por conseguinte, eficiente no
processo de ensino e de aprendizagem.
Podemos
ainda pensar que juntamente com o corpo docente na escola podemos estar
montando planos de ação onde, por exemplo, se realizaria uma competição de
esportes. Nela envolver-se-ia conteúdos de várias disciplinas, pois o português
seria na leitura sobre os esportes, a matemática no cálculo dos placares, a
geografia onde o esporte foi criado, a ciências como funciona o corpo em
movimento e muitas outras. Neste caso da competição, o mais agradável às
crianças e, que certamente pelas vias do desejo, faria com que compreendessem e
incorporassem os conteúdos seria finalmente o movimentar-se. Seria uma
experiência marcante e positiva que ia deixar boas recordações, ainda que
inconscientes como aquelas que temos da nossa própria infância.
Para
que consiga propor tais intervenções é importante que o profissional conheça
toda a escola, sua estrutura institucional e que forme laços afetivos que
sustentem o trabalho visto que as relações profissionais são muito importantes
neste sentido.
A partir do momento em que o profissional
se aproxima das diversas instancias através do conhecer ele vai legitimar sua
posição dentro da escola, estrutura que agora também fará parte, consolidando o
seu trabalho. Terá que tomar cuidado para que não haja superposição de papéis e
nesta intervenção pautará sua ação vendo também através da aproximação das
instancias como esta escola se insere na comunidade (sociedade) sem pressa de
dar resultados destes processos, pois é a escuta detalhada e a interface destes
contextos que irão compor o seu plano de ação.
O uso do corpo permite que as
lembranças sejam prazerosas, como já citado, e com isso faz com que a pessoa
associe o aprendizado a sensações gostosas e encantadoras do brincar. O contato
direto com os objetos e a interação com o outro promovem brincadeiras que geram
curiosidade, inquietação, necessidade de movimentar-se e, no final, um
aprendizado mais efetivo. Afinal de contas compreender a aprendizagem apenas
reduzida ao viés da patologia não levará a nada, pois o importante ao
profissional na escola é verificar como o sujeito aprende e porque este
processo pode estar “atrapado”
e não como ele não aprende pois isto está colocado pelos professores,
coordenadores e até familiares. Deste modo, vejo a Psicomotricidade e a
Psicanálise como sendo uma díade capital de muita importância para os profissionais
que atuam na área educacional.
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