Ceci n’est pas une pipe[1]: Um ensaio sobre a inibição da aprendizagem à luz das
Representações Sociais
Ludmilla
Lopes da Fonsêca[2]
“O famoso
cachimbo...
Como fui
censurado por isso!
E
entretanto...
Vocês podem
encher de fumo
o meu
cachimbo?
Não, não é
mesmo?
Ela é apenas
uma representação.
Portanto,
se eu tivesse
escrito sob meu quadro:
‘isto é um
cachimbo’,
eu teria
mentido.”
(René Magritte
- Os dois mistérios, 1966)
Ceci
n’est pas une pipe: introduzindo a metáfora do cachimbo
Inicio
estas letras pensando como a obra Os dois
Mistérios (1966) do artista belga René François Ghislain Magritte (1898-
1967) de fato pode - dentre outras -representar imageticamente a inibição da
aprendizagem. Este constructo presente no cotidiano escolar toma muitas
conformações e sobre ele sempre temos algo a falar. Considero que as palavras
ditas no aspecto manifesto jamais alcançam o sentido latente e, a frase
colocada na obra Ceci n’est pás une pipe
(Isto não é um cachimbo) permite metaforizar o que seria então a inibição da
aprendizagem já que não é o apenas o “cachimbo” que vemos?
A
instituição escolar tem como função preparar a criança para ingressar na
sociedade, promovendo as aprendizagens tidas como importantes para o grupo
social ao qual esse sujeito pertence. Essa promoção de aprendizagens ao longo
do processo civilizatório foi modificando até chegar ao atual modelo de
educação sendo considerado até como um mecanismo da modernidade para
homogeneizar. Os avanços da ciência fizeram com que o conhecimento se torne
fragmentado, paralelo a isso produziu-se também desconhecimento do humano da
vida e das relações e, o reflexo disso na educação perpassa pelos sistemas
competitivos e pelos saberes desconectados.
Em
outros momentos sociais, por exemplo, deu-se mais ênfase a educação tecnicista,
passando a valorizar posteriormente o ensino superior. Essa modificação da
estrutura educacional trouxe como consequência a falta de mão de obra na área
técnica (não contratualizados) e, estamos percebendo um retorno à valorização
destes cursos mais específicos (contratualizados). Ainda com o advento
contemporâneo vemos que houve uma modificação na maneira de pensar e, os
critérios de verdade pautados na premissa de que “contra fatos não há
argumentos” – Aristóteles - faz com que hoje tenhamos outros critérios de
verdade atribuindo a academia o saber, na transposição do mundo da fé para o
mundo da ciência.
Enquanto
instituição, a escola, é parte integrante da sociedade - bem como a família -
cabendo-lhe também a divulgação e a consolidação de valores através do processo
civilizatório no qual há um peso da ciência na modernidade. O tempo de hoje
passa a não ser mais o “tempo da natureza”, passa ele a ser o “tempo da máquina”
e, a educação não fica fora deste (des)compasso já que o “tempo de aprendizagem”
do aluno é muitas vezes desestruturado para que possamos dar conta do relógio, do cronos
no qual a “colheita” da aprendizagem tem que ter uma “adubação extra” para
que não mais tenhamos “colheitas sazonais” mas uma “colheita de saberes
permanentes”.
A
sociedade outorga à escola a incumbência de educar e instruir, visando a
participação crítica e responsável dos indivíduos aos diversos segmentos que a
compõem. Assim, além de o aluno ser visto em sua dimensão individual, há
necessidade da escola homogeneizar o grupo, vendo-o também em sua dimensão
social, visto que há objetivos mínimos que cada aluno deve atingir ao cursar o
ensino obrigatório, regras estas às quais está submetido, pois há uma instância
maior – o Estado – que as propõe. Entretanto, por vezes, a escola não questiona
o seu próprio funcionamento e o fracasso escolar é entendido como sendo do
aluno, ou seja, sob este prisma, ele não possuiria as características
necessárias para um bom desempenho escolar.
Pensar
a escola torna inerente pensar também os processos e as relações que nela se
estabelecem e, assim, falamos de processo ensino-aprendizagem, relação
aluno-professor dentre tantas outras nomenclaturas. Trago então à baila a
discussão se a escola questiona o seu próprio funcionamento quanto às relações
estabelecidas do aluno com o processo de aprendizagem ou, se em caso de
fracasso, ela apenas tem um olhar sobre isso - o fracasso escolar – entendido
como sendo do aluno. Se ele apenas vê o cachimbo sem metaforizar outras
possibilidades de leitura da situação. Ou seja, sob este prisma, a escola
refere o aluno como não possuidor de características necessárias para um bom
desempenho escolar? Este é um questionamento à partir do que escuto do lugar de
psicóloga quando a temática educacional está no cerne de discussões.
A inibição da aprendizagem à luz das
Representações Sociais
Ao
falar do fenômeno inibição da aprendizagem considero que estamos tratando de
Representações Sociais[3] e,
sobre isso, trago a referência de Ornellas[4]
acerca de RS que pontua:
[...] representação social, ao estudar a ação humana,
expressa uma espécie de saber prático de como os sujeitos sentem, assimilam,
aprendem e interpretam o mundo, inseridos no seu cotidiano, sendo, portanto,
produzidos coletivamente na prática da sociedade e no decorrer da comunicação
entre os sujeitos.
O conceito de RS não é
algo fácil de ser definido ele perpassa algumas das ciências humanas e não é
exclusivo de uma área em particular. As raízes do mesmo são ligadas à
sociologia de Durkheim que no final do século XIX trouxe a “expressão representação coletiva para falar sobre
a especificidade do pensamento social em relação ao pensamento
individual”(Ornellas, 2001).
Nas RS há também presença significativa da
antropologia e da história, contudo, é na Psicologia Social que a Teoria das
Representações Sociais (TRS) ganha corpo com o psicólogo social europeu Serge Moscovici na sua obra La Psychanalyse, son image, son public (A Psicanálise, sua imagem e seu público) de 1961 e,
posteriormente em aprofundamento aos estudos deste, com Denise Jodelet. Esta
abordagem psicossociológica das representações sociais servirá então de marco
para outros campos teóricos como saúde e especialmente para educação como vemos
ainda em Ornellas(2001):
O campo das
representações sociais vem produzindo o conhecimento prático advindo da vida
cotidiana, e articula um sujeito particular a um objeto concreto em uma
situação sócio-histórico-cultural determinada, assentando-se sobre as
atividades de pesquisa empírica. (Ornellas, 2001, p. 33)
Desta maneira, referir
sobre fracasso escolar na relação aqui estabelecida como uma representação
social é ampliar o olhar e perceber que o mesmo está por vezes ligado no
social, ao ponto de vista dominante e tem sobre ele uma relação de poder e de
gozo no qual o professor afirma um não conhecer sem que seja sabido pelo aluno,
o que efetivamente deveria adquirir para que estivesse em outro lugar, que não
o de fracassado. Sim, porque quando falamos em dominação, em relação
colonizador-colonizado colocamos em xeque o pré saber deste sujeito-aluno em detrimento
de um ponto de vista homogeneizador.
Sá (1996, p. 29) refere
que “o termo representações sociais designa tanto um conjunto de fenômenos
quanto o conceito que os engloba e a teoria construída para explicá-los,
identificando um vasto campo de estudos psicossociológicos”. Moscovi inaugurou
então um modelo de construção pautado no subjetivo de maneira que o pesquisador
obtém seus dados de uma forma mais indireta o que foi à época uma mudança à
frente do seu tempo.
Apesar de considerar que
há certa dificuldade em definir as representações sociais o próprio Moscovici
tenta nomear o conceito dizendo:
Por representações
sociais, entendemos um conjunto de conceitos, proposições e explicações
originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o
equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenças das sociedades
tradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do senso
comum. (Sá, 1996)
É lícito referir que a
escola por muito tempo diante do contexto sócio-político no qual estava imersa
foi palco de uma racionalidade técnica que de certa maneira perdura até hoje
ainda que em certos momentos mostre-se velada. Por detrás de terminologias e
metodologias tidas como modernas existe toda uma rede de pensares sociais que
ratificam tais ideologias.
Diante
disto considero caber assim ao educador contemporâneo ter uma percepção
ampliada e apreensão do constructo representação social para que a partir da
compreensão de como as RS se constituem dentro de cada grupo possam operar
mudanças na sua prática cotidiana.
A
tarefa de educar na contemporaneidade faz premente o redimensionamento
metodológico e prático inclusive abrindo campo à leitura da psicanálise, por
exemplo, frente à necessidade de entendimento da dificuldade de aprendizagem
sob um novo prisma que não aquele da incapacidade. Neste sentido, podemos abrir
o leque ao falar de uma outra representação da dificuldade de aprendizagem que
faça pensar através deste marco teórico outras possibilidades para uma prática.
Ainda entendendo e ampliando
o construto de Representações Sociais como o saber do senso comum sobre o
cotidiano e lembrando que na tese
moscoviciana esta teoria foi “operacionalizada para trabalhar com o
pensamento social em sua dinâmica e em sua diversidade” (Arruda, 2002, p. 129)
continuo a trazer à tona a importância de um novo sentido de ver a educação
contemporânea e, a interface que se faz com a RS decorre do fato de que:
O estudo das
representações sociais como formas de conhecimento do senso comum foi
largamente desenvolvido tomando-se em consideração diversos lugares de
ancoragem e diversas ordens de dinâmicas contribuindo as suas formações, suas
estruturas, seus funcionamentos e seus efeitos. (Jodelet, 2005, p.23)
Desta
forma há necessidade de se compreender o fracasso escolar sobre outro prisma e,
as RS mostram-se importantes neste sentido já que o senso comum sempre coloca
as crianças com dificuldade de aprendizagem no lugar do “sem jeito”. Ou seja,
através da Teoria das Representações Sociais podemos perceber que essa
concepção de fracasso escolar não surge desarticulada da realidade concreta de
maneira inclusive que por muito tempo permaneceu a ideia de que dificuldade de
aprendizagem era sinônimo de burrice, de deficiência, de fracassado na vida. O
mau letramento, as dificuldades instrucionais sempre foram consideradas como
sendo dificuldades do sujeito, inerentes a este e, até mesmo, já foram tentadas
casuísticas genéticas.
O
que percebemos com isto são as diferentes formas com as quais certos grupos
estabelecem suas representações sobre determinado fenômeno e, estas diferentes
formas de inibição do ato de aprender[5],
no registro individual, são respostas possíveis do aprendente às demandas da aprendizagem. Ou seja, o sintoma escolar
pode ser uma das formas que o aluno apresenta como “tentativa de sustentar-se
na posição de sujeito quando se sente ameaçado pelas pressões do meio ambiente”,
como nos coloca Soares (1999)[6].
Algumas letras (In)conclusivas
Ampliar
o estudo sobre as representações sociais pode ser uma possibilidade outra de
conceber a subjetividade como constituída através das relações com o outro,
ainda constatando a prevalência do olhar e do discurso que revelam os processos
internos, subjetivos e intrapsíquicos. Tal fato nos permite salientar que o
olhar e, a escuta têm por objetivos, não a classificação do aluno-sujeito em
tantos outros rótulos, mas, sim, a verificação de como ele está aprendendo e o
que está dificultando o desenvolvimento de suas potencialidades tecendo novas
representações sociais no âmbito educativo.
Considerando
que as representações sociais de acordo com Sá (1996) “circulam através da
comunicação social cotidiana e se diferenciam de acordo com os conjuntos
sociais que as elaboram e utilizam[7]”
há necessidade de um ‘redimensionar educativo’ no que tange o acolher ao
aluno-sujeito.
Tomando
o próprio Moscovici (1984) então vemos o caráter contemporâneo das suas
proposições quando o autor diz:
As
representações sociais em que estou interessado não são as de sociedades
primitivas, nem as reminiscências, no subsolo de nossa cultura, de épocas
remotas. São aquelas da nossa sociedade presente, do nosso solo político,
científico e humano, que nem sempre tiveram tempo suficiente para permitir a
sedimentação que as transformasse em tradições imutáveis. (Moscovici, 1984 apud
Sá, 1996, p. 49)
Não
devemos perder de vista, assim, que a sociedade atual traz consigo a marca da
virtualização das relações, do acesso on
line ao conhecimento o que não permite com facilidade o estabelecimento de
tradições estanques. Sendo RS a imagem da realidade social e “um processo que
torna o conceito e a percepção de algum modo intercambiáveis, visto que se
engendram reciprocamente” (Moscovici, 11976 apud Sá, 1996, p. 45). Em se
tratando desta realidade hipertextual
não caberia conceber deste modo a ideia pregressa de tabula rasa trazida por John Lock (1632-1704), filósofo inglês
ideólogo do liberalismo que
sustentou que nascemos sem idéias inatas, e que o conhecimento é determinado
apenas pela experiência derivada da percepção dos sentidos, ou seja, aprendemos
pela experiência da tentativa e erro. Afinal, Ceci n’est
pás une pipe (Isto não é um cachimbo). Mas, a imagem lembra um cachimbo?
Parece um cachimbo? Seria uma outra coisa? Fico pensando o que seria...
Referências
ARRUDA, Angela. Teorias das Representações Sociais e Teorias
de Gênero. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 127-147, novembro
de 2002.
BERMAN,
Marshall. Tudo que é sólido se desmancha
no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.FREUD, Sigmund. O Mal estar na Civilização (1930). In: Obras completas de Sigmund Freud, Vol. XXI . Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIDDENS, Antony. Mundo em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.
_______. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomáz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP &A. 2006.
HOBSBWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve século XX – 1914-1991. Cia das Letras
JODELET, Denise. Experiência e Representações sociais. In: Menin M.S. e Shimizu, A. (org). Experiência e Representação social: questões teóricas e metodológicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
ORNELLAS, Maria de Lourdes. Psicanálise e sala de aula: um véu que revela. Disponível em http://www.maieutica.com.br/biblio/Maria_de_Lourdes_S_Ornellas.doc
______. Imagem do outro (e)ou imagem de si? Salvador: Portfolium, 2001.
PATTO, Maria Helena Souza. Introdução à psicologia escola. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
SÁ, Celso Pereira. Sobre o núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1996.
SOARES, Jaci Célia Franca. O avesso da Pedagogia: retomando o discurso da subjetividade pela via da psicanálise. Salvador: EDUFBA, 1999.
[2] Psicóloga, Psicopedagoga,
Técnica da Secretaria Municipal da Educação, Cultura, Esporte e Lazer (SECULT);
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade - UNEB;
Pesquisadora do GEPE-rs (Grupo de Estudos em Psicanálise, Educação e Representação
Social); ludy_fonseca@yahoo.com.br
[3] Representações Sociais – RS
usado a partir daqui para falar no sentido de teoria
[4] Termo retirado do artigo
Psicanálise e sala de aula: um véu que revela disponível em http://www.maieutica.com.br/biblio/Maria_de_Lourdes_S_Ornellas.doc
[5] Termo utilizado pela Psicanálise
para designer dificuldade de aprendizagem.
[6] SOARES, J.C.F. amplia esta ideia
no seu doutorado que resultou a obra O
avesso da Pedagogia: retomando o discurso da subjetividade pela via da
psicanálise, p. 135
[7]
SÁ, C. P. Sobre o núcleo central das representações
sociais, p. 22
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