domingo, 25 de janeiro de 2015

#Regram Ana Rita Ferraz

TRISCOU, PEGOU: ou da beleza e do cuidado na educação
Ana Rira Ferraz

Outro dia, enquanto andava pela orla de Salvador, lamentando o seu descuido, pensava insistentemente na fala de Vinícius de Morais: "Beleza é fundamental!". Pensava: beleza tem o mesmo sentido de cuidado. Cuidado tem a mesma raiz de cura. Cuidado é envolver afetivamente, e envolver é encantar. Beleza sem cuidado é somente enfeite.

Andamos descuidando da vida e, não poucas vezes, estamos descuidados. Desencantados. Tento me dar conta dos momentos em que verdadeiramente estou em beleza. Quase raros. E sem dar por mim exibo-me enfeitada. Beleza é sinônimo de presença e de harmonia: "harmonia contrastante, como o arco e a lira", diria Heráclito.
Visitei uma escola pública e lastimei a feiúra e o descuido. Lamentei a ausência do Estado na sua função primeira: de cuidado. O Estado é negligente com as suas obrigações. Pois, na escola tudo era feio: paredes sujas e de cor escura, tudo era de cimento, as carteiras estavam quebradas, os quadros pichados. Na sala dos professores um amontoado de objetos danificados. As portas da secretaria, da diretoria, os laboratórios e a cantina eram gradeados.
Os professores e professoras estavam cansados(as), algumas com ca-belos desgrenhados pelo dia intensivo de três turnos de trabalho. Corpos lassos, segurando o último fôlego para enfrentar a turma. Sim, porque àquela altura era mesmo uma situação de enfrentamento. O coordenador transitava pelos corredores e exasperava-se com a impossibilidade de controle. Gritava - era quase um grito de desespero. Tudo era feio naquela escola. Há em voga uma ideologia que faz coincidir pobreza com feiura e descuido.
Certa feita, uma diretora, de uma outra escola pública, disse-me que sua vida no trabalho era uma desgraça. Ela passava 12 horas sendo diretora. Cinquenta por cento do seu dia era pleno de desgraça. Uma infelicidade geral emanava dela e contaminava o ambiente.
Mas o fascínio do viver está no que nos escapa, ou se escapa. Porque algo sempre escapa. Não há fronteira que não seja porosa. Na escola descuidada chamavam-me atenção algumas jovens muito bem penteadas e maquiadas. Lindas. Uma professora usando batom e brincos grandes alegrava-se por um trabalho que fizera na sala de vídeo. A beleza daquelas estudantes e da sua professora era mais que um ato de revolta, era afirmação de uma vida potente, naquilo que há de exuberância e de beleza.
Os estudantes, ruidosamente ocupavam a área externa, digladiando-se, mas também rindo, namorando, conversando. Onde quase tudo era feio e desleixado irrompia beleza e vontade de vida. E lá vinha novamente Vinícius: beleza é fundamental. E se beleza e cuidado andam juntos, a eles naquele momento associei dignidade. A educação precisa de beleza, de cuidado e de dignidade.
Quando fui naquela escola lembrei-me de Maria Helena, uma senhora que cuidou de mim e da minha casa por algum tempo. Sempre que eu chegava da rua e abria a porta sentia a presença mágica de Maria Helena. Ela era como uma fada que transformava as minhas roupas, a minha comida, a minha vida, com seu cuidado. Imaginei o que Maria Helena faria por aquela escola. Imaginei como as pessoas se sentiriam envolvidas pelo seu afeto e disposição para cuidar.
Quando eu era pequena e brincava de picula, ou pega-pega, dizíamos: triscou, pegou. Pois bem, assim é com a beleza: triscou, pegou. Assim é com o cuidado: triscou, pegou. Assim é com a dignidade: triscou, pegou. E vamos passando adiante: triscou, pegou. Isso me conforta porque ainda que não façamos a grande revolução, cotidianamente ao triscarmos em alguém passare-mos adiante essa vontade de cuidado, de dignidade e de beleza na escola, na universidade, nas nossas vidas. Necessitamos mesmo de outras estéticas. Minha luta cotidiana é, então, por uma política de contágio e por táticas de guerrilha – tal como aprendi nas brincadeiras de picula.

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