sábado, 22 de dezembro de 2012


Ceci n’est pas une pipe[1]: Um ensaio sobre a inibição da aprendizagem à luz das Representações Sociais

Ludmilla Lopes da Fonsêca[2]

 

 
“O famoso cachimbo...
Como fui censurado por isso!
E entretanto...
Vocês podem encher de fumo
o meu cachimbo?
Não, não é mesmo?
Ela é apenas uma representação.
Portanto,
se eu tivesse escrito sob meu quadro:
‘isto é um cachimbo’,
eu teria mentido.”
(René Magritte - Os dois mistérios, 1966)

Ceci n’est pas une pipe: introduzindo a metáfora do cachimbo
Inicio estas letras pensando como a obra Os dois Mistérios (1966) do artista belga René François Ghislain Magritte (1898- 1967) de fato pode - dentre outras -representar imageticamente a inibição da aprendizagem. Este constructo presente no cotidiano escolar toma muitas conformações e sobre ele sempre temos algo a falar. Considero que as palavras ditas no aspecto manifesto jamais alcançam o sentido latente e, a frase colocada na obra Ceci n’est pás une pipe (Isto não é um cachimbo) permite metaforizar o que seria então a inibição da aprendizagem já que não é o apenas o “cachimbo” que vemos? 
A instituição escolar tem como função preparar a criança para ingressar na sociedade, promovendo as aprendizagens tidas como importantes para o grupo social ao qual esse sujeito pertence. Essa promoção de aprendizagens ao longo do processo civilizatório foi modificando até chegar ao atual modelo de educação sendo considerado até como um mecanismo da modernidade para homogeneizar. Os avanços da ciência fizeram com que o conhecimento se torne fragmentado, paralelo a isso produziu-se também desconhecimento do humano da vida e das relações e, o reflexo disso na educação perpassa pelos sistemas competitivos e pelos saberes desconectados. 
Em outros momentos sociais, por exemplo, deu-se mais ênfase a educação tecnicista, passando a valorizar posteriormente o ensino superior. Essa modificação da estrutura educacional trouxe como consequência a falta de mão de obra na área técnica (não contratualizados) e, estamos percebendo um retorno à valorização destes cursos mais específicos (contratualizados). Ainda com o advento contemporâneo vemos que houve uma modificação na maneira de pensar e, os critérios de verdade pautados na premissa de que “contra fatos não há argumentos” – Aristóteles - faz com que hoje tenhamos outros critérios de verdade atribuindo a academia o saber, na transposição do mundo da fé para o mundo da ciência.
Enquanto instituição, a escola, é parte integrante da sociedade - bem como a família - cabendo-lhe também a divulgação e a consolidação de valores através do processo civilizatório no qual há um peso da ciência na modernidade. O tempo de hoje passa a não ser mais o “tempo da natureza”, passa ele a ser o “tempo da máquina” e, a educação não fica fora deste (des)compasso já que o “tempo de aprendizagem” do aluno é muitas vezes desestruturado para que possamos dar conta do relógio,  do cronos no qual a “colheita” da aprendizagem tem que ter uma “adubação extra” para que não mais tenhamos “colheitas sazonais” mas uma “colheita de saberes permanentes”.
A sociedade outorga à escola a incumbência de educar e instruir, visando a participação crítica e responsável dos indivíduos aos diversos segmentos que a compõem. Assim, além de o aluno ser visto em sua dimensão individual, há necessidade da escola homogeneizar o grupo, vendo-o também em sua dimensão social, visto que há objetivos mínimos que cada aluno deve atingir ao cursar o ensino obrigatório, regras estas às quais está submetido, pois há uma instância maior – o Estado – que as propõe. Entretanto, por vezes, a escola não questiona o seu próprio funcionamento e o fracasso escolar é entendido como sendo do aluno, ou seja, sob este prisma, ele não possuiria as características necessárias para um bom desempenho escolar.
Pensar a escola torna inerente pensar também os processos e as relações que nela se estabelecem e, assim, falamos de processo ensino-aprendizagem, relação aluno-professor dentre tantas outras nomenclaturas. Trago então à baila a discussão se a escola questiona o seu próprio funcionamento quanto às relações estabelecidas do aluno com o processo de aprendizagem ou, se em caso de fracasso, ela apenas tem um olhar sobre isso - o fracasso escolar – entendido como sendo do aluno. Se ele apenas vê o cachimbo sem metaforizar outras possibilidades de leitura da situação. Ou seja, sob este prisma, a escola refere o aluno como não possuidor de características necessárias para um bom desempenho escolar? Este é um questionamento à partir do que escuto do lugar de psicóloga quando a temática educacional está no cerne de discussões.
A inibição da aprendizagem à luz das Representações Sociais
Ao falar do fenômeno inibição da aprendizagem considero que estamos tratando de Representações Sociais[3] e, sobre isso, trago a referência de Ornellas[4] acerca de RS que pontua:
[...] representação social, ao estudar a ação humana, expressa uma espécie de saber prático de como os sujeitos sentem, assimilam, aprendem e interpretam o mundo, inseridos no seu cotidiano, sendo, portanto, produzidos coletivamente na prática da sociedade e no decorrer da comunicação entre os sujeitos.
O conceito de RS não é algo fácil de ser definido ele perpassa algumas das ciências humanas e não é exclusivo de uma área em particular. As raízes do mesmo são ligadas à sociologia de Durkheim que no final do século XIX trouxe a “expressão representação coletiva para falar sobre a especificidade do pensamento social em relação ao pensamento individual”(Ornellas, 2001).

 Nas RS há também presença significativa da antropologia e da história, contudo, é na Psicologia Social que a Teoria das Representações Sociais (TRS) ganha corpo com o psicólogo social europeu Serge Moscovici na sua obra La Psychanalyse, son image, son public (A Psicanálise, sua imagem e seu público) de 1961 e, posteriormente em aprofundamento aos estudos deste, com Denise Jodelet. Esta abordagem psicossociológica das representações sociais servirá então de marco para outros campos teóricos como saúde e especialmente para educação como vemos ainda em Ornellas(2001):
O campo das representações sociais vem produzindo o conhecimento prático advindo da vida cotidiana, e articula um sujeito particular a um objeto concreto em uma situação sócio-histórico-cultural determinada, assentando-se sobre as atividades de pesquisa empírica. (Ornellas, 2001, p. 33)

Desta maneira, referir sobre fracasso escolar na relação aqui estabelecida como uma representação social é ampliar o olhar e perceber que o mesmo está por vezes ligado no social, ao ponto de vista dominante e tem sobre ele uma relação de poder e de gozo no qual o professor afirma um não conhecer sem que seja sabido pelo aluno, o que efetivamente deveria adquirir para que estivesse em outro lugar, que não o de fracassado. Sim, porque quando falamos em dominação, em relação colonizador-colonizado colocamos em xeque o pré saber deste sujeito-aluno em detrimento de um ponto de vista homogeneizador.
Sá (1996, p. 29) refere que “o termo representações sociais designa tanto um conjunto de fenômenos quanto o conceito que os engloba e a teoria construída para explicá-los, identificando um vasto campo de estudos psicossociológicos”. Moscovi inaugurou então um modelo de construção pautado no subjetivo de maneira que o pesquisador obtém seus dados de uma forma mais indireta o que foi à época uma mudança à frente do seu tempo.
Apesar de considerar que há certa dificuldade em definir as representações sociais o próprio Moscovici tenta nomear o conceito dizendo: 

Por representações sociais, entendemos um conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do senso comum. (Sá, 1996) 

É lícito referir que a escola por muito tempo diante do contexto sócio-político no qual estava imersa foi palco de uma racionalidade técnica que de certa maneira perdura até hoje ainda que em certos momentos mostre-se velada. Por detrás de terminologias e metodologias tidas como modernas existe toda uma rede de pensares sociais que ratificam tais ideologias.
Diante disto considero caber assim ao educador contemporâneo ter uma percepção ampliada e apreensão do constructo representação social para que a partir da compreensão de como as RS se constituem dentro de cada grupo possam operar mudanças na sua prática cotidiana.
A tarefa de educar na contemporaneidade faz premente o redimensionamento metodológico e prático inclusive abrindo campo à leitura da psicanálise, por exemplo, frente à necessidade de entendimento da dificuldade de aprendizagem sob um novo prisma que não aquele da incapacidade. Neste sentido, podemos abrir o leque ao falar de uma outra representação da dificuldade de aprendizagem que faça pensar através deste marco teórico outras possibilidades para uma prática.
Ainda entendendo e ampliando o construto de Representações Sociais como o saber do senso comum sobre o cotidiano e lembrando que na tese moscoviciana esta teoria foi “operacionalizada para trabalhar com o pensamento social em sua dinâmica e em sua diversidade” (Arruda, 2002, p. 129) continuo a trazer à tona a importância de um novo sentido de ver a educação contemporânea e, a interface que se faz com a RS decorre do fato de que: 
O estudo das representações sociais como formas de conhecimento do senso comum foi largamente desenvolvido tomando-se em consideração diversos lugares de ancoragem e diversas ordens de dinâmicas contribuindo as suas formações, suas estruturas, seus funcionamentos e seus efeitos. (Jodelet, 2005, p.23) 
Desta forma há necessidade de se compreender o fracasso escolar sobre outro prisma e, as RS mostram-se importantes neste sentido já que o senso comum sempre coloca as crianças com dificuldade de aprendizagem no lugar do “sem jeito”. Ou seja, através da Teoria das Representações Sociais podemos perceber que essa concepção de fracasso escolar não surge desarticulada da realidade concreta de maneira inclusive que por muito tempo permaneceu a ideia de que dificuldade de aprendizagem era sinônimo de burrice, de deficiência, de fracassado na vida. O mau letramento, as dificuldades instrucionais sempre foram consideradas como sendo dificuldades do sujeito, inerentes a este e, até mesmo, já foram tentadas casuísticas genéticas.
O que percebemos com isto são as diferentes formas com as quais certos grupos estabelecem suas representações sobre determinado fenômeno e, estas diferentes formas de inibição do ato de aprender[5], no registro individual, são respostas possíveis do aprendente às demandas da aprendizagem. Ou seja, o sintoma escolar pode ser uma das formas que o aluno apresenta como “tentativa de sustentar-se na posição de sujeito quando se sente ameaçado pelas pressões do meio ambiente”, como nos coloca Soares (1999)[6].
Algumas letras (In)conclusivas
Ampliar o estudo sobre as representações sociais pode ser uma possibilidade outra de conceber a subjetividade como constituída através das relações com o outro, ainda constatando a prevalência do olhar e do discurso que revelam os processos internos, subjetivos e intrapsíquicos. Tal fato nos permite salientar que o olhar e, a escuta têm por objetivos, não a classificação do aluno-sujeito em tantos outros rótulos, mas, sim, a verificação de como ele está aprendendo e o que está dificultando o desenvolvimento de suas potencialidades tecendo novas representações sociais no âmbito educativo.
Considerando que as representações sociais de acordo com Sá (1996) “circulam através da comunicação social cotidiana e se diferenciam de acordo com os conjuntos sociais que as elaboram e utilizam[7]” há necessidade de um ‘redimensionar educativo’ no que tange o acolher ao aluno-sujeito.
Tomando o próprio Moscovici (1984) então vemos o caráter contemporâneo das suas proposições quando o autor diz:
As representações sociais em que estou interessado não são as de sociedades primitivas, nem as reminiscências, no subsolo de nossa cultura, de épocas remotas. São aquelas da nossa sociedade presente, do nosso solo político, científico e humano, que nem sempre tiveram tempo suficiente para permitir a sedimentação que as transformasse em tradições imutáveis. (Moscovici, 1984 apud Sá, 1996, p. 49)
Não devemos perder de vista, assim, que a sociedade atual traz consigo a marca da virtualização das relações, do acesso on line ao conhecimento o que não permite com facilidade o estabelecimento de tradições estanques. Sendo RS a imagem da realidade social e “um processo que torna o conceito e a percepção de algum modo intercambiáveis, visto que se engendram reciprocamente” (Moscovici, 11976 apud Sá, 1996, p. 45). Em se tratando desta realidade hipertextual não caberia conceber deste modo a ideia pregressa de tabula rasa trazida por John Lock (1632-1704), filósofo inglês ideólogo do liberalismo que sustentou que nascemos sem idéias inatas, e que o conhecimento é determinado apenas pela experiência derivada da percepção dos sentidos, ou seja, aprendemos pela experiência da tentativa e erro. Afinal, Ceci n’est pás une pipe (Isto não é um cachimbo). Mas, a imagem lembra um cachimbo? Parece um cachimbo? Seria uma outra coisa? Fico pensando o que seria...
Referências
ARRUDA, Angela. Teorias das Representações Sociais e Teorias de Gênero. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 127-147, novembro de 2002.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FREUD, Sigmund. O Mal estar na Civilização (1930). In: Obras completas de Sigmund Freud, Vol. XXI . Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GIDDENS, Antony. Mundo em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.
_______. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomáz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP &A. 2006.
HOBSBWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve século XX – 1914-1991. Cia das Letras
JODELET, Denise. Experiência e Representações sociais. In: Menin M.S. e Shimizu, A. (org). Experiência e Representação social: questões teóricas e metodológicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
ORNELLAS, Maria de Lourdes. Psicanálise e sala de aula: um véu que revela. Disponível em http://www.maieutica.com.br/biblio/Maria_de_Lourdes_S_Ornellas.doc
______. Imagem do outro (e)ou imagem de si? Salvador: Portfolium, 2001.
PATTO, Maria Helena Souza. Introdução à psicologia escola. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
SÁ, Celso Pereira. Sobre o núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1996.
SOARES, Jaci Célia Franca. O avesso da Pedagogia: retomando o discurso da subjetividade pela via da psicanálise. Salvador: EDUFBA, 1999.

 


[1] Isto não é um cachimbo
[2] Psicóloga, Psicopedagoga, Técnica da Secretaria Municipal da Educação, Cultura, Esporte e Lazer (SECULT); Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade - UNEB; Pesquisadora do GEPE-rs (Grupo de Estudos em Psicanálise, Educação e Representação Social);  ludy_fonseca@yahoo.com.br
[3] Representações Sociais – RS usado a partir daqui para falar no sentido de teoria

[4] Termo retirado do artigo Psicanálise e sala de aula: um véu que revela disponível em http://www.maieutica.com.br/biblio/Maria_de_Lourdes_S_Ornellas.doc

[5] Termo utilizado pela Psicanálise para designer dificuldade de aprendizagem.
[6] SOARES, J.C.F. amplia esta ideia no seu doutorado que resultou a obra O avesso da Pedagogia: retomando o discurso da subjetividade pela via da psicanálise, p. 135
[7] SÁ, C. P. Sobre o núcleo central das representações sociais, p. 22

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