quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Psicomotricidade e Psicanálise


Contribuições da Psicomotricidade e da Psicanálise: ampliando olhares sobre a aprendizagem
Ludmilla Lopes da Fonsêca

De um modo geral podemos considerar que o corpo e os gestos são fundamentais para a formação global do ser humano. Desde que nasce, podemos perceber que a criança usa a linguagem corporal para conhecer a si mesma, para relacionar-se com seus pais, para movimentar-se e descobrir o mundo. Essas descobertas feitas com o corpo deixam marcas, são aprendizados incorporados e eficazes, que lhe dão acesso a ordem da cultura, além de auxiliar na formação do mundo simbólico deste sujeito.

Para que de fato isto seja constituído de modo efetivo e psiquicamente saudável, neste sentido sob o prisma da psicanálise que aqui tomo como balizador, é necessário que a constituição do sujeito se dê dentro da base triangular. A triangulação edipiana formada por pai – mãe – criança inaugura um mundo simbólico sustentado pela lei exercida pela função paterna, o pai fazendo parte do mito necessário à ordem (Lei) e, essa suposição torna-se universal e paira no imaginário coletivo.

A esse respeito, Lacan[1] defende a importância do pai, não enquanto ser encarnado, mas como ‘entidade essencialmente simbólica’ que ordena uma função. Nesse sentido, a questão do pai é postulada por tal autor sob a égide da triangulação edipiana como unidade fundadora da família. Com isso, busca-se marcar a importância das funções parentais e do seu papel simbólico enquanto um sistema ordenador do sujeito e suporte da estruturação psíquica da criança, permitindo-lhe iniciar-se em uma existência significante.

Assim, parafraseando Lacan, a família não se constitui apenas de homem, mulher e filhos, ela é antes construção psíquica, onde cada membro tem sua função e seu lugar constituindo-se num verdadeiro sistema cuja marca desempenha papel fundamental no nascimento do sujeito, em sua inscrição subjetiva.

Esta prévia psicanalítica tem como intuito demonstrar o valor da família como uma instancia importante para a criança numa ordem simbólica. As palavras que lhes são dirigidas são cheias de sentimentos dos agentes que a circulam e, inaugura possíveis vias de simbolização e sentimento. A família é então a entrada em contexto amplo e social, e é assim que, para fins desse trabalho, considera-se a família, de modo geral, nos moldes propostos pelo psicanalista Jacques Lacan, ou seja, como “sendo aquela na qual configura-se não apenas um grupo natural, mas, simbólico”.[2]

 A partir de tais premissas vemos então a importância simbólica da família na estruturação de uma criança e ainda a importância do corpo visto que a criança pequena vivencia inicialmente o mundo no corpo. Isso ficará ainda mais demonstrado quando a criança passa então a ter fraturas no processo de conhecimento. O seu corpo, o seu movimento, a sua aprendizagem em algum momento podem apresentar-se fracassados e eis que a análise de tal contexto – a família - é remetida para que a compreensão deste sujeito se faça.

Uma criança, neste sentido, pode apresentar uma inapropriação do seu corpo de modo que é torpe nos seus movimentos. Estes a tornam uma desajeitada para o senso comum, mas, mais do que isso, ela vivencia um significante de incapacidade como sendo a sua imagem corporal, pois desde sempre fora deste modo considerada e falada pelo meio familiar como aquela que é incapaz de pegar algo que “tudo cai das suas mãos” ou ainda “vive caindo pelo caminho”.

A contribuição da Psicomotricidade neste caso se mostrará eficaz quando o profissional conseguir acessar e compreender tal significante e permitir que o sujeito o elabore de modo mais adequado passando a uma imagem corporal diferente e, por conseguinte uma vivência corporal menos sintomática dando outros significados à sua vida. Isso se dará dialeticamente em âmbito inconsciente influindo no consciente através das atitudes globais do sujeito. O local adequado deste tipo de análise seria então o setting terapêutico onde através do brincar com materiais menos estruturados como panos, bolas, tubos, bambolês dentre outros que lhe permitam simbolizar, o psicomotricista pudesse desenvolver sua linha de trabalho.

Os conhecimentos da psicomotricidade à educação ampliam e auxiliam então questões referentes a aprendizagem quando demonstram que alguns casos de dificuldade não se circunscrevem apenas a questões pedagógicas em si, mas, a questões psicomotoras. Por vezes, nas questões levantadas vem à tona uma imagem corporal desconexa de modo que a atitude emocional frente ao seu próprio corpo naquele momento está lhe permitindo simbolizar através daquele sintoma escolar. Por outras vezes, uma falta de domínio óculo-manual - que é fundamental de ser adquirido para que a criança tenha um bom domínio da escrita - necessita ser trabalhado. Neste sentido, percebamos quão importante é a interferência multiprofissional fazendo o educador o encaminhamento necessário e ampliando sua leitura do cenário educativo contemporâneo.

Outro exemplo disso, seria quando um profissional consegue verificar que uma criança apresenta comportamentos mais instáveis tendo necessidade de estar em movimento sendo desorganizada no espaço e nas questões práticas. Ele tem então o conhecimento teórico acerca da psicomotricidade que por vezes uma criança desorganizada apresenta também um esquema psicomotor desorganizado. Daí verifica a importância de um trabalho psicomotor que permitirá que seja redimensionada a sua falta de planejamento motor passando a usar seus movimentos em relação ao outro, a si mesma e ao meio - a sua corporeidade - como forma de melhorar essa sua relação Eu no Mundo.

Certamente é na escuta minuciosa e na acolhida da demanda “através de um olhar que possa contemplar e alcançar a singularidade das existências”[3], através da utilização do lúdico, do jogo, da observação das falas, dos silêncios, dos gestos e do corpo, enfim, das diferentes manifestações expressivas do sujeito trazidas ao profissional e, ainda avaliando como vão se construindo os caminhos traçados pelos desejos humanos e seus quereres concernentes à aprendizagem,  revelando deste modo a sua condição de ser-no-mundo que irá pautar o trabalho que tenha uma orientação psicanalítica visto que o ato de escutar concebe a subjetividade como constituída através dos vínculos com o outro e, permitirá um olhar que enfatiza os artifícios internos, subjetivos e intrapsíquicos do aprendente que neste caso encontra-se em “processo de construção do conhecimento, o ser cognoscente”[4].

Em tempo, lembremos que o trabalho com o corpo durante a escolarização passa por períodos distintos. Podemos de um modo geral considerar que se a apropriação deste corpo não se der adequadamente poderemos encontrar dificuldades no futuro, pois a simbolização no corpo vai se dando na medida em que o sujeito vai se constituindo enquanto tal. Durante a Educação Infantil, por exemplo, a necessidade de movimentar-se é mais respeitada pela escola, o corpo é usado em brincadeiras, atividades de arte, de música etc. A criança pode correr, pular, levantar-se sem censura alguma. O problema é na passagem para o primeiro ciclo por volta de 6 ou 7 anos.

Neste caso, a criança é chamada a ter uma outra postura, a de ser mais séria, afinal de contas, acredita-se que para entrar no letramento é necessário estar sentado em frente ao ‘mestre’ para dele ‘beber’ o conhecimento. Mas será que se trata apenas de uma questão cronológica? Será que há necessidade de olhar fixamente para o quadro para aprender ou, será que vivenciar o aprendizado no corpo torna mais efetivo e mais satisfatório aprendizado?

Estas são questões a se pensar! Como pontua Esteban Levin em entrevista[5] à repórter Paola Gentile da Revista Nova Escola “Os movimentos são saberes que adquirimos sem saber, mas que também ficam à nossa disposição para serem colocados em uso”. Nesta mesma entrevista, Levin pontua ainda que “a obrigação de deixar o corpo estático, sem movimento, pode ser uma das causas da hiperatividade, isso sem falar das dores corporais que a falta de atividade às vezes traz”. Ratifico com isso a minha hipótese na prática psicológica de que muitos casos encaminhados pela escola como falta de atenção e concentração, ou ainda, dificuldade de aprendizagem estão muito mais associados a questões psicomotoras mal trabalhas e, até por que não, mal administradas.

Sim, digo mal administradas pois, percebo uma ansiedade atual quanto a criança permanecer sentada chegando este aspecto a ser qualificado como avaliativo. Em tempos de tecnologia e cibercultura onde se fica sentado em frete à TV ou na internet, em chats, redes sociais ou em jogos eletrônicos durantes horas, parece-me que isto faz esquecermos que criança por si é movimento, é corpo em movimento como meio de absorção do mundo ao seu redor.

Suponho que uma forma de minimizar tais encaminhamentos seria um trabalho planejado com a finalidade de demonstrar ao professor que um bom uso do corpo pode ser de grande ajuda no processo de aprender e apreender conteúdos. Aprender experimentando no corpo é mais fácil do que sentados estáticos em frente ao quadro-negro afinal assimilar palavras, conceitos, teorias e construtos é realizado por cada um de modo distinto e, a padronização do estar sentado pode dificultar este processo para aqueles que são mais corporais do que verbais. Devemos enquanto profissionais não perder de vista a possibilidade de pensar várias opções para a criança adquirir conhecimento afinal o uso do movimento corporal pode ser um recurso prazeroso e, por conseguinte, eficiente no processo de ensino e de aprendizagem.

Podemos ainda pensar que juntamente com o corpo docente na escola podemos estar montando planos de ação onde, por exemplo, se realizaria uma competição de esportes. Nela envolver-se-ia conteúdos de várias disciplinas, pois o português seria na leitura sobre os esportes, a matemática no cálculo dos placares, a geografia onde o esporte foi criado, a ciências como funciona o corpo em movimento e muitas outras. Neste caso da competição, o mais agradável às crianças e, que certamente pelas vias do desejo, faria com que compreendessem e incorporassem os conteúdos seria finalmente o movimentar-se. Seria uma experiência marcante e positiva que ia deixar boas recordações, ainda que inconscientes como aquelas que temos da nossa própria infância.

Para que consiga propor tais intervenções é importante que o profissional conheça toda a escola, sua estrutura institucional e que forme laços afetivos que sustentem o trabalho visto que as relações profissionais são muito importantes neste sentido.

A partir do momento em que o profissional se aproxima das diversas instancias através do conhecer ele vai legitimar sua posição dentro da escola, estrutura que agora também fará parte, consolidando o seu trabalho. Terá que tomar cuidado para que não haja superposição de papéis e nesta intervenção pautará sua ação vendo também através da aproximação das instancias como esta escola se insere na comunidade (sociedade) sem pressa de dar resultados destes processos, pois é a escuta detalhada e a interface destes contextos que irão compor o seu plano de ação.

O uso do corpo permite que as lembranças sejam prazerosas, como já citado, e com isso faz com que a pessoa associe o aprendizado a sensações gostosas e encantadoras do brincar. O contato direto com os objetos e a interação com o outro promovem brincadeiras que geram curiosidade, inquietação, necessidade de movimentar-se e, no final, um aprendizado mais efetivo. Afinal de contas compreender a aprendizagem apenas reduzida ao viés da patologia não levará a nada, pois o importante ao profissional na escola é verificar como o sujeito aprende e porque este processo pode estar “atrapado”[6] e não como ele não aprende pois isto está colocado pelos professores, coordenadores e até familiares. Deste modo, vejo a Psicomotricidade e a Psicanálise como sendo uma díade capital de muita importância para os profissionais que atuam na área educacional. 

REFERÊNCIAS
DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem, Porto Alegra: Artes Médicas, 1992.
_______. Introdução: a função do pai em psicanálise. In: O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
FERNÁNDEZ, A. Lugar do corpo no aprender. In: Inteligência aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
INGUAGGIATO, M. L. Função paterna e desenvolvimento psicomotor. Revista Iberoamericana de Psicomotricidad y Técnicas Corporales. Ano 1, nº 4, nov/2001.
JERUSALINSKY, J. Temporalidade e desenvolvimento. In: Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. Salvador: Ágalma, 2006.
LEVY, E. Reflexões a propósito da clínica psicopedagógica e psicomotora. In: Jerusalinsky, A. (org) Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
ROCHA, M. A pertinência do paradigma da complexidade no campo psicomotor. In: Ferreira, C.A.M. (org) Psicomotricidade Clínica. São Paulo: Lovise, 2002.
SÀNCHEZ, P.A. A psicomotricidade: uma prática pedagógica de ajuda à maturação. In: A psicomotricidade na educação infantil: uma prática preventiva e educativa. Porto Alegre: Artmed, 2003.
SILVA, M.C.A e. Psicopedagogia: em busca de uma fundamentação teórica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.


[1] DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem, p.17.
[2] Idem Ibden.
[3] DUTRA, E. Considerations on the meanings of clinical psychology in our times. Via web
[4] SILVA, M.C.A e. Psicopedagogia: em busca de uma fundamentação teórica. p. 29.
[6] Termo usado por Alicia Fernàndez - traduzido para o português como sendo aprisionado - no livro Inteligência Aprisionada.

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